quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Pobreza e cultura...

*Interior do Globe Theatre, em Londres, que foi totalmente reconstruido.


Muitos aqui na blogosfera não sabem, mas sou designer e trabalho com vidro. E também sou professor de técnicas artesanais de trabalho em vidro, como fusing e casting (patê du verre).
Em agosto, fui convidado a dar aulas em Santo André, cidade que pertence a Grande São Paulo, em um projeto da prefeitura chamado Rede Cultural.
Santo André é uma cidade cuja prefeitura é famosa por incentivar e cuidar da cultura de forma exemplar junto aos munícipes, dando acesso a uma série de oficinas e eventos às camadas mais pobres da população local.
Esse projeto, Rede Cultural, começou a ser implantado há 12 anos, na administração do prefeito Celso Daniel, excelente ser humano e excepcional administrador que, infelizmente foi assassinado há alguns anos como todos sabem.
Estou dando aulas para duas turmas, uma à tarde e outra à noite, e o curso termina nesta semana.
Assumo, sem querer parecer pedante ou coisa que o valha, que um curso de fusing ou casting pode parecer ser uma coisa meio elitista, afinal é um curso geralmente procurado por pessoas pertencentes a uma certa elite, não só financeira como também social, intelectual e cultural.
Minhas turmas são compostas por sua grande maioria, de mães de alunos, coordenadores e funcionários das EMEI’s da cidade — ou seja, um público exatamente oposto à elite a qual eu estava acostumado a dar aulas.
Quando fui convidado pelo pessoal do Rede Cultural, recebi com muita empolgação esta tarefa, mesmo que fosse para trabalhar de graça, pois sempre acreditei que o acesso à cultura (e a arte) de forma geral, é um dever fundamental do governo junto à população. Uma nação só se desenvolve através da cultura e da educação. É essencial isso! No meu entendimento é tão ou mais importante do que a saúde ou qualquer outro tema. É fato que sem cultura um país não se desenvolve! São pontos fundamentais para que um país se torne de fato uma nação desenvolvida. E olha que o Brasil tem um potencial extremamente rico nesse sentido, só falta realmente vontade política e um pouco de vergonha na cara de nossos governantes... enfim, não é esse o ponto que quero falar.
Alguns dias atrás, conversando com um amigo, ele me contou sobre uma pessoa que falou para ele que achava uma besteira oferecer cultura, em qualquer forma que seja, para a população mais carente. Que pobre não gosta de cultura, que não sabe dar valor, que é um desperdício...
Amigos, desculpem-me, mas ignorância tem limite... E olha que não é a primeira vez que escuto esse tipo de besteira.
Não precisa nem fazer grandes estudos sobre isso... basta ver nos noticiários, quando, por exemplo, o governo ou mesmo a iniciativa privada, oferece algum tipo de entretenimento cultural gratuito na cidade ou na periferia. Lotação esgotada!!! Sempre! E com um público, em sua maioria, composto por essa parte da população menos “abastada”.
É um erro (burro) achar que se a pessoa não tem um certo nível “socio-intelecto-cultural” (elitista isso), ela não saberá aproveitar, ou ela não irá querer... Burrice pura!
Basta pegar Shakespeare, por exemplo. Apesar de um certo elitismo rondar a sua vasta obra, clássica (e só por esse termo já ser cerceada por uma aura pseudo-intelectualóide), Shakespeare era extremamente popular. Suas peças de teatro eram representadas para o povão, para as pessoas mais humildes, sem um pingo de formação ou estudo. E era um estrondoso sucesso. O povo que fez Shakespeare ser o que ele é, sem tirar o mérito, é óbvio, da riqueza da sua obra.
Mas nem vou me ater a essa discussão, porque infelizmente ainda muitas pessoas realmente pensam assim. Coitadas!
O que quero contar é sobre o espetáculo de encerramento do ano letivo do Rede Cultural, que se deu hoje no Teatro Municipal de Santo André.
O Rede Cultural tem várias atividades e oferecem diversas oficinas a toda essa população mais “carente”, assim como também trabalha com a capacitação dentro da rede pública de ensino, formando professores em diversas áreas ligadas as artes.
Como outros educadores que trabalham para o Rede, eu também fui homenageado nessa festa de encerramento, o que muito me comoveu, tenho que confessar.
Passada as burocráticas mas sensíveis solenidades, que se deram logo no inicio da festa, começou em seguida um show. Uma apresentação dos alunos com todas as áreas que o Rede Cultural atuou nesse ano que esta acabando. Circo, teatro, música, dança, instrumentos, expressão corporal e etc...
Como a Prefeitura de Santo André sempre incentivou isso tudo, então não se via desperdício nem esbanjamento de dinheiro, mas também não se via falta de recursos. Tudo em ordem, tudo funcionando, tudo certo como deve ser mesmo.
Se vocês tivessem a noção do capricho, do cuidado com cada detalhe... Impressionante. Os figurinos, os adereços, a iluminação... tudo parecendo coisa (dita) de “país desenvolvido”.
Eu, por pertencer a uma certa elite, dentro desse nosso Brasil, já tive acesso á muitas coisas legais e bacanas, inclusive essas de “país desenvolvido”. Já tive o privilégio de ver muitos espetáculos, dos mais simples aos mais sofisticados, e digo, com propriedade, que a apresentação que vi hoje, era coisa sim de “país desenvolvido”. Mas além da maravilha de espetáculo o que mais me deixou fascinado foi a audiência, o público.
Cheguei cedo ao teatro, com medo de me perder no caminho, e quando abriu-se as portas do teatro no horário marcado, não mais do que 20 pessoas estavam aguardando para entrar. Com um certo sentimento de pena talvez, achei uma grande sacanagem, tão poucas pessoas presentes.
Sentei-me em uma poltrona perto do palco pois teria que subir para receber minha homenagem na hora que fosse chamado. E aguardei pelo início.
Para minha satisfação (já no nível pessoal, nessa altura do campeonato) o teatro começa a encher, mais e mais pessoas começam a chegar e a lotar a platéia do grande e imponente Teatro Municipal de Santo André. E quem era essa platéia? Além de alguns poucos políticos da região, secretários municipais e incluindo o prefeito, mães e alunos das várias EMEI’s da periferia de Santo André. Funcionários, alunos, filhos... Gente muito simples que havia colocado a melhor roupa de domingo para ir ver o filho ou sobrinho se apresentar naquele palco, demonstrando o que havia aprendido nas oficinas ao longo desse ano que passou, pessoas que nunca tiveram a oportunidade de ir a um lugar suntuoso como aquele. O Teatro lotou, e lotou, pessoas em pé no fundo e sentados nos corredores. Gente saindo pelo ladrão, como dizia minha avó.
Foi emocionante perceber a euforia e ansiedade que circulava por entre aquelas pessoas, aqueles pais e mães, professores, filhos e funcionários... o Teatro se iluminava com o brilho daqueles olhos vidrados e ansiosos... Só ai já teria valido o espetáculo... mas teve mais, muito mais.
Começa a trilha sonora, as luzes se apagam, a cortina se abre e sob gritos e assobios ensudercedores, o espetáculo começa. Costumo ser um pouco exagerado, mas juro que estou sendo bem comedido agora. A minha primeira impressão foi de estar sentado em um teatro da Broadway, assistindo a algum daqueles famosos musicais.
Impecável é a palavra exata.
Música, efeitos especiais, projeções, figurino... tudo.
E ali, sentado naquela poltrona, vi uma maravilha de espetáculo.
Apesar dos números simples em termos de malabarismos, danças e atuações, afinal são crianças pertencentes a uma população carente mesmo, em todos os sentidos, e que tiveram apenas alguns meses de oficinas, o que mais me chamou a atenção foi a reação do público. Parecia que eu estava em um estádio de futebol ou então em algum show de rock com fãs adolescentes enlouquecidos perante seus ídolos. Havia uma interação da platéia com os “artistas”, dignos da época de Shakespeare. Cada um que entrava em cena, os familiares gritavam, assobiavam, levantavam, tiravam foto, davam tchauzinhos com os braços erguidos, falavam... foi uma coisa impressionante.
Confesso, que nos primeiros minutos estranhei muito, acostumado que sou a “teatros de elite”, onde o silêncio impera durante todo o espetáculo. Mas logo nos minutos seguintes, ao ver aquela manifestação tão sensorial e espontânea, me veio à mente exatamente uma cena de filme sobre a época de Shakespeare, quando no Globe Theatre, em Londres, o público, em pé, pois não existiam cadeiras nos teatros da época, interagiam com os atores e seus personagens em cena, gritando, assobiando, falando e dando opiniões enquanto eram encenadas as peças do bardo.

Me vi, por alguns instantes, lá em Londres, no Globe Theatre, no século 16, assistindo a uma peça de Shakespeare, interagindo, falando, gritando... E adorando tudo aquilo.

Finalizando, o espetáculo foi sensacional, em todos os sentidos...
Do início ao fim. Impecável na produção e na interação da platéia (que ocorreu durante todo o espetáculo)... até mesmo no final, quando a platéia extasiada, não cansava de aplaudir aqueles jovens “artistas”, mais extasiados ainda, pulando freneticamente sobre o palco do imponente Teatro Municipal de Santo André.
Que experiência fantástica pude viver hoje.

E depois ainda tem gente (ignorante e estúpida) que tem a coragem e a insensatez de falar que “pobre” não gosta de cultura...
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Ontem, dia 11/dezembro, fiquei sabendo que mais de 200 pessoas ficaram de fora da festa no dia do evento. O teatro já estava com a lotação máxima possível e por medidas de segurança não foi permitida a entrada de mais pessoas.

8 comentários:

Anônimo disse...

Pois é, Vâmvú... Concordo e acabei de sentir tudo que foi essa noite, pela tua letra, pela tua emoção. Parabéns e "vamo que vamo"!!!

Adriano Queiroz disse...

Estou emocionado.
É de uma alegria tão grande poder ler este texto, por vários motivos, por saber que existem pessoas que se preocupam com o bem estar dos outros, dedicam seu tempo em troca da felicidade alheia, pela prefeitura de Santo André ser atuante, pelo sucesso da apresentação e pela presença do público que foi tocado e sensibilizado.
"Pobre não gosta de cultura" é de uma burrrice tão grande, que amedronta, pq são justamente estes indivíduos - uso esta palavra propositalmente -, que destratam e fazem diferença com os não-pertecentes a elite institucional.
Sabe o quanto gosto de vc, agora lendo este post admiro-o mais, parabéns mesmo cara.
Vc é da elite dos que querem e fazem o bem.
A Márcia Tiburi no Café Filosófico disse que uma das grandes perdas da pós-modernidade é que nós começamos a achar que dá pra ser feliz sozinho, individualmente, este é um erro, pq não dá, a felicidade só ocorre quando podemos trocar, quando alguém doa um pouco pra nós e nós para os outros.
Sempre penso que um sorriso salva uma vida.
Vc sabe que eu sou fã da Madre Teresa, mesmo sendo ateu; termino com duas frases dela.

"Por vezes sentimos que aquilo que fazemos não é senão uma gota de água no mar. Mas o mar seria menor se lhe faltasse uma gota." M. T. C.

Vâmvú esta sua gota em Santo André fez diferença.

"O senhor não daria banho a um leproso nem por um milhão de dólares? Eu também não. Só por amor se pode dar banho a um leproso." M. T. C.

Mesmo que vc ganhasse dinheiro pra dar suas aulas, se não tivesse o amor antes, vc não iria.
Vc fez com amor e dedicação, ganhou o melhor "esta tal felicidade" que eu sei que está explodindo aí dentro.

Agradeço por tê-lo como amigo, mesmo a distância.
Vc me enriquece.

Aperto forte, satisfeito e emocionado.

R. M. Peteffi disse...

nota de rodapé...- além de shakespeare...um músico...mozart, dois filósofos... sócrates e cristo...pra falar entre os maiores...
e um fato...o governo do chile andou distribuindo entre as camadas menos abastadas da população uma sacola de livros por casa...(ou era essa a mediada, se n me engano)...e dentro tinha neruda, kafka, etc... enfim...o governo respeita o intelecto do povo...e pela profusão de poetas e escritores chilenos bons, o ato, evidentemente, dá frutos...
achar que as pessoas não têm nenhum outro interesse além de pasto e água...essa é a visão de mundo d'um asno.

agora...parabéns pela iniciativa...! e continuemos...

abrassssssssssssssssssssss

sonia disse...

rapaz que orgulho de vc.....entendo perfeitamente essa emoção e me identifico com ela,pois fui profa de artes na perifa e no morumbi e aonde me realizei mais foi na perifa........
Eles eram sedentos por saber tudo e vibravam ...........
Ao contrário do Morumbas que ninguém queria nada com nada e o material era importado e diferente...........
eu pegava os restos e levava para a perifa e eles vibravam com tudo......uma delícia...
beijos

Srta. Coisa disse...

"Existem imbecis felizes e gênios infelizes. Mas a sabedoria é algo distinto da genialidade. Tampouco tem a ver com desatino ou tolice. A sabedoria é, sim, um certo tipo de felicidade"(andré comte sponville)
eu sou Assistente Social e venho encontrando, ao longo da minha vida, razões pra me emocionar com esta força de vida que conduz esta parcela da população desfavorecida economicamente... é uma força que vem de dentro...é sabedoria. CULTURA COM RECHEIO... nada mais gostoso. sua vivência relatada no texto me emocionou.
beijo

:.tossan® disse...

Já dizia o poeta do espetáculo que o povo gosta de luxo e a cultura pode ser levada ao povo desta forma.
Parabéns e obrigado pelos seus seviços prestados a poulação menos favorecida. A marca bendita desta linda aventura vc levará para vida toda com um gostinho de quero mais. Espero. Bravo!

Adriano Queiroz disse...

Informação adicional ratificando o texto.

Abraços.

fab disse...

Morei em SP por vinte e dois anos, quem finge que a cidade é só prédio e luxo ou é hipócrita ou é ignorante. Também apóio as iniciativas de cultura (seja de qual área se trata) para quem mora em favela. Na suna sul da capital tem muita dessas iniciativas, o problema é que é raríssimo ver isso por toda a sp. Onde eu morava, por exemplo, só tinha igreja, boteco, e biqueira de droga. Quem dera se houvesse uma Rede Cultural como essa por lá, :/
Valeu pela visita, abraços.